sábado, 24 de outubro de 2009

A PRETA E O “PAGÃO”



A PRETA E O “PAGÃO”






Nos primeiros alvores da colonização amazônica, ao sudeste do estado do Pará, no ponto de encontro de dois rios, surgiu um pequeno povoado. Os pretextos que os homens tiveram para juntar-se e ali construir seus ninhos foram diversos: a exploração da castanha, a parada obrigatória dos barcos, devido a sua estratégica localização, as suas areias brancas muito limpas, e tantos outros.

Homens rudes, violentos porém, empreendedores, iniciaram a construção de grandes galpões para depósitos comerciais, pequenas casas para albergar trabalhadores e suas famílias que, com o transcorrer do tempo, contrastavam com as amplas e luxuosas construções dos ricos fazendeiros e comerciantes.

Na volta dos galpões foram-se instalando pescadores, lavadeiras, pessoal das embarcações, construtores, pequenos comerciantes, com seus bares e quitandas. Os rios e as praias atraíam como um imã, em especial aos mais pobres que dali extraíam de tudo para sobreviver. Era nos rios que as lavadeiras tinham um meio prático e econômico de trabalho e, sem duvidas, uma alternativa para a comunicação “ao pé do ouvido”, para as “fofocas”, além do banho refrescante, adequado para suportar as altas temperaturas da região. Seminuas, as mulheres, transformavam o trabalho em lazer, vigiando os filhos, que em torno delas desfrutavam da piscina natural. Era a cultura dos povos ribeirinhos que nascia naqueles tempos, na considerada porta de entrada da Amazônia.

Ao romper do dia o som dos motores das embarcações misturava-se com o das aves que vinham da mata, passando em bandos por sobre o povoado. Uma migração diária que, seria silenciosa, a não ser pelos barulhentos papagaios e tucanos. Pela tarde, os mesmos sons invertiam seu caminho, agora as criaturas da natureza retornando para o descanso.

Lá na curva, onde se perdem os olhares e parecem juntar-se as matas das margens do rio, escuras pela contraluz, a natureza faz um brinde ao seu show diário de cores e luzes. Da linha do horizonte, um raio sobe em direção ao céu e se bifurca em infinidade de outros raios, que como gigantescas espadas espetam, costurando as brancas nuvens. Ao passar entre elas as dissolve em rosa, azul, amarelo e prata, formando estranhas e sobrenaturais figuras.

A natureza, consciente de sua infinita beleza, faz o entardecer devagar, lentamente, para ser apreciado. Formações de pássaros refletem nas águas. O perfil escuro das embarcações em contraluz, algumas perto e outras ao longe, completa a paisagem. São os últimos instantes do dia, cedendo ante a chegada implacável da noite.

No povoado, as ruas transformavam-se em um formigueiro humano. Os bares com suas mulheres eram lugar obrigatório dos homens que, influenciados pelo álcool, brigavam, discutiam, gritavam e, a sua maneira, se divertiam. Motivos fúteis traziam desentendimentos, que de tanto em tanto finalizavam em violência, muitas vezes fatal.

As famílias ocupavam a frente das casas e as crianças enchiam as ruas num corre-corre de gritarias, brincadeiras e antigas cantigas trazidas de povos distantes. Nas moradias iam surgindo as primeiras luzes amareladas dos lampiões e das velas. A precária iluminação indicava a chegada da noite, que vinha fresca e reconfortante, como um presente da mata e dos rios.

Com o tempo foi construída uma pracinha e nela a igreja de São Sebastião, voltada para o rio, que tinha como pároco um velho padre francês. Diariamente ele percorria o povoado, sendo conhecido por todos os moradores, em especial as crianças, que sentiam prazer de vê-lo zangado. Nessa situação, seu idioma natural se fazia mais acentuado, misturando-se com o “português” que, mal falado, tornava-se difícil de entender, sendo o divertimento preferido dos pequenos.

Quando o velho sacerdote estava de bom humor, chamava-os para perto dele e de uma pequena tabaqueira extraia rapé, que colocava nos narizes fazendo-os espirrar. Ele ria, era a sua vingança. Com o avanço dos anos, as manias do padre iam aumentando, fazendo-se mais evidentes: fechava as portas da Igreja, não permitia a entrada das mulheres com roupas “leves”; as cerimônias eram imprevisíveis pelas atitudes caprichosas do padre e longe de afastar aos fieis constituíam–se num alegre atrativo, motivo suficiente dos mais variados comentários e boatos intermináveis, para uma comunidade sem muitos fatos relevantes. Começavam na hora e pelo seu relógio ou, ia embora sem realizá-las deixando aos noivos familiares e participantes dos batismos ou casamentos desapontados, sem saber o que fazer.

O Ademir e a Maristela eram “filhos do rio”, como todas as crianças do povoado. Ele pertencia a uma família negra, constituída e estabelecida, sendo seu pai um considerado construtor de barcos que fazia questão de manter-se e mante-los longe da igreja e suas atividades o que era fortemente questionado pelos setores mais radicais da religião, com apoio do padre Pierre. O que mais molestava ao sacerdote era o fato do construtor não querer batizar a seus filhos. Numa oportunidade foi feita uma reunião com a finalidade de convencer ao descarrilado construtor, sendo quando ele falou ao padre:

- Padre Pierre eu vou lhe dizer o seguinte: não tenho nenhum interesse de ir ao céu quando morrer. Vai ser muito monótono. Ali, padre, não vou encontrar nenhum amigo e tal vez nem você.

Causando risos de uns e surpresas de outros servindo para aumentar as polemicas e aprofundando as distancias entre ambos. O radical párroco que a pesar dos esforços realizados não conseguia dobrar ao duro construtor, não se perdoava a evidente derrota e o negativo exemplo que representava para a comunidade.

Ela, Maristela, era filha de um “gringo” alto, loiro e muito branco, que um dia teve uma morte violenta encomendada por um dos “coronéis” da região. Era pequenina ainda, quando aconteceu. Sua mãe, mistura de índio e negro, depois da morte do pai, entregou-a para uma comadre da beira do rio. Eram muitos filhos para sustentar e duvidoso o caminho futuro a percorrer. Uma criança pequena, e fêmea, ainda, atrapalhava.

A vida dos dois transcorria mais dentro da água que na terra. Nadavam o dia todo como peixes. Brincavam de passar por debaixo das embarcações e, o que podia parecer perigoso para os outros, para eles era diversão. Inocentes, sentindo o prazer da liberdade.

Suas mães, experientes e precavidas, passaram a não permitir que fossem para o rio totalmente nus. Porém, as roupas muito finas, cuja finalidade seria cobri-los, depois de molhadas ficavam transparentes, colavam na pele, tornando-se incapazes de dissimular a agressividade natural das formas adquiridas pelos seus corpos. O leve “tomara-que-caia” começava a ficar esticado pelo volume dos seios. O calção dele, feito de uma saia velha da mãe, se tornara apertado é insinuante demais, causa inevitável do crescimento.

Os costumeiros encontros debaixo das embarcações já não eram como a tempos atrás. O instinto do “predador” começava a sobrepor-se. Abraçava e tocava Maristela, sem a inocência de antes. Ela sem saber por que, aceitava. Eram aquelas as mesmas mãos de sempre que agora cobravam outro sentido, ainda que agressivas mais agradáveis. Ela sentia prazer com elas, e ele..., nelas.

Um dia de movimento, o rio cheio de lavadeiras, crianças, homens e mulheres das embarcações. O sol ardia. Maristela e Ademir, pisando os treze anos, jogavam-se na água, uma, duas e outras tantas vezes mais, passando por debaixo de um grande barco amarrado ali. Sem saber como, encontraram-se de frente. Como tantas outras vezes, ele a abraçou, tampou sua boca e nariz, para afogá-la. No entanto, sentiu no corpo dela algo diferente. Estava de costas para ele e a água fazia aumentar cada curva do corpo. O sangue desceu de uma vez e ele pareceu desmaiar. Assustado soltou-a e saiu da água. Sentou-se na plataforma enxugando o rosto com as mãos, sem atrever-se a olhá-la. Ela, por instinto feminino, saiu mais calma. Colocou-se a seu lado, olhando-o pelo canto do olho. Seu olhar escondia um leve sorriso. Sem falar, ele se jogou novamente na água e, atrás, foi ela. Novamente deixou-se abraçar e percorrer o corpo com as mãos. Beijou-a e ela se deixou beijar. Saíram cada um para um lado da embarcação, tomaram ar enchendo os pulmões e, novamente, uma outra e outra vez tornaram a encontrar-se. E ele, tornara a beijá-la. Depois saíram para a praia, subiram o alto cais que separava o rio da praça. Ele pegou sua mão e ela se deixou levar. Saíram à rua desorientados, sem saber o que estavam procurando e para que. Intuitivamente cruzaram a praça, ainda molhados. E pararam na porta da igreja - que não devia, mas, estava fechada. Ele encostou-se para tomar fôlego e ela, “submissa”, sempre tomada de sua mão, também. Desde ali já não se enxergava as lavadeiras. Com o peso dos corpos a porta se abriu...

O padre Pierre Vissô caminhava lentamente contra a parede, para evitar os raios do sol do meio-dia. A calma era total, tudo estava paralisado, estático, ninguém atrevia-se a ficar exposto ao sol naquele horário. O sacerdote voltava do almoço, da casa de dona Dirce, hábito adquirido desde o tempo em que ainda não existia a igreja, e ele vinha da capital, a cada quinze dias, para rezar missa e supervisionar a construção. Este antigo e fiel relacionamento em muitas oportunidades foi o motivo de subterrâneos maliciosos comentários e suposições, em especial de airadas beatas que não aceitavam a preferencia do padre francês. As prerrogativas da dona Dirce iam desde ter um lugar próprio e privilegiado na primeira fila na missa, ate receber a hóstia, na comunhão, antes que os demais fieis. Em uma oportunidade em que o povoado teve a visita do Bispo, expuseram a sua desconformidade com estes fatos e o chefe religioso tirou-lhe importância dizendo:

- “Vozeeis devem tolerar ao padre Pierre, com a sua dedicação a feito possível a construção da igreja e a atenção da comunidade católica e não será fácil encontrar um substituto.”

O velho sacerdote subiu as escadas, muito devagar, apoiando a mão esquerda sobre o joelho da perna do mesmo lado. A gota fazia estragos na sua saúde. Cada dia se fazia mais evidente a curva nas costas diminuindo a sua figura. Já na porta fez o sinal da cruz, deteve-se para dar a última olhada na praça, no rio, depois foi olhando cada uma das construções como verificando que tudo estava no seu lugar. O ritual diário havia concluído. Empurrou a porta da igreja lentamente, fechando-a a seguir. Uma pequena lagartixa, sem calda, passou por sua frente e subiu na parede caminho ao teto. Ele ficou olhando-a sem entender que podia tela assustado tanto. Detrás vinha Napoleao, o enorme gato castrado do sacerdote que ao velo deteve a sua casada para meter-se debaixo da batina. O velho pároco sorrio....

- Sacrilégio...sacrilégio! Mon Die!

As grandes e pesadas portas, agora, totalmente abertas, permitiam vê-lo no centro, com a sua negra e diminuta figura, os braços abertos como possesso, gritando para todo o povo ouvir. A sua voz retumbava no silêncio do meio-dia, cruzava a praça, faziam eco nas águas do rio e desaparecia na mata. Da grande castanheira da praça, na frente da igreja, os passarinhos saíram em debandada, assustados. Das portas das casas, os vizinhos apareciam nas janelas, outros iam até a calçada, abandoando a suas redes, para ver o que estava acontecendo de tão grave, motivo de tanto alvoroço. Infinidade de cabeças com bocas e olhos muito abertos surgiam no perfil do cais, atraídos pelo berreiro.

- Maldetos..., no minha Igredja!. Esse “pagom” e esse “preta”...sai, sai de minha vista!...vai emborra filhos do satã! Excomungados...

Tomados pelas mãos, as figuras mirradas e recém “batizadas” por padre Pierre como “Pagão” e “Preta, apareceram no vão da porta. Eles, nus, olhavam para todos os lados como procurando o melhor caminho a seguir, as opções eram poucas. Depois saíram correndo: nus, totalmente nus, como tinham aprendido a estar desde pequenos. Os descarnados corpos infantis, com a agilidade própria da idade corriam e pulavam salvando obstáculos como o faria qualquer animal selvagem pego “infraganti”. Na realidade nada existia neles, que pudesse ferir a moral ou constituísse um fato incomum, a não ser a sua breve e frustrante passagem pelo templo sagrado do padre Pierre Visso. Algumas mulheres cobriram, espantadas, as bocas com as mãos, tentando esconder aos filhos detrás delas. Tarefa nada fácil,. Outras as mais velhas faziam o sinal da cruz. Os homens, depois de passada a surpresa inicial, sorriam, assobiavam e gritavam-lhes frases airadas. A “Preta e o Pagão” riam felizes! Nas mãos as poucas roupinhas, ainda molhadas. Iam rumo ao único refugio que consideravam seguro e muito bem conhecido por eles, o rio...A pesar do fato..., inocentes ainda.



___________________O___________Lille/ dic/2003

Um comentário:

  1. Uma bela história, que mostra a inocencia da descorta entre dois jovens criados em uma linda comunhão com a natureza, e a hipocrisia da igreja, que sempre usou esse manto de uma falsa moral...

    Triste de ler... de imaginar o que se passava na cabecinhas desses jovens...

    Beijos

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